RESIDÊNCIA NA CASA RESTAURA-ME
Em setembro de 2015, a
Cia O Grito se envolveu com iniciativas públicas para pessoas em situação de
rua com a ocupação da Casa Restaura-me.
Sediados no Brás, no
segundo andar da instituição que atende mais de 400 adultos por dia e oferece espaço
para alimentação, higiene pessoal e lazer aos seus conviventes, demos início a
uma pesquisa que buscou materialidades estéticas sobre tal espaço e suas
pessoas. No decorrer da nossa residência na Casa, que completou 5 anos em
setembro de 2020, articulou-se apresentações gratuitas de espetáculos da Cia O
Grito e de grupos parceiros, edições do Sarau no Grito, realizou-se também a
Oficina de Ator Brincante com Tião Carvalho, Oficina sobre Coro/coralidade e
Jogo Teatral com Ingrid Koudela,
para artistas, estudantes
e demais interessados e a Oficina Mascarando de confecção de máscaras de gesso
com Telumi Hellen, além das oficinas de teatro que foram oferecidas aos
conviventes da casa no início do projeto de residência e o atual projeto CONTAR[mi]NAR[ele].
As ações desenvolvidas durante esses anos de atuação nos permitiram uma relação
um pouco mais aprofundada com o contexto da rua e dos temas que a cercam e
fundamentaram novas diretrizes à pesquisa da Cia O Grito. Percebemos que as
realidades, observadas no espaço de acolhida no qual desenvolvemos nosso
projeto de residência, não poderiam ser analisadas tão somente como casos
específicos de pessoas em situação de rua, mas sim como simulacros de
realidades que podem ser observadas no próprio bairro do Brás onde se localiza
a Casa que, por sua vez, pode ser caracterizado como um simulacro das condições
da própria cidade de São Paulo.
Entendemos simulacro aqui
como um conceito associado à
simulação, que implica a
representação de algo. Para Ginsburg (2001), por um lado, a
‘representação’ faz às vezes
da realidade representada e, portanto evoca a ausência; por outro, torna
visível a realidade representada e, portanto, sugere a presença. É exatamente
no limiar entre essa ausência e essa presença que entendemos os simulacros da Casa Restaura-me em relação
ao Brás e o Brás em relação à cidade São Paulo.
A atual pesquisa da Cia O
Grito busca se aprofundar em uma linguagem interventiva que compele relações
mais aprofundadas com os espaços e suas pessoas e pauta-se em intervenções
urbanas e site specific como linguagens artísticas que podem abarcar esse eixo
temático que foi evidenciado pela própria trajetória da companhia em seu
projeto de residência, especialmente no caminho entre as oficinas de teatro
oferecidas aos conviventes da Casa e o projeto CONTAR[mi]NAR[ele].
As oficinas de teatro
desempenharam uma importante função em nossa “chegada”, estabeleceram e
fomentaram relações com os conviventes da Casa Restaura-me e afinaram nosso
olhar para essas pessoas, nos colocaram em contato com suas lógicas, com suas
experiências singulares e suas individualidades, nos levando a um estado
constante de (des)construção de nossos pré-conceitos e a um infinito arcabouço
de possibilidades. As oficinas eram realizadas em nosso espaço dentro da Casa e
eram baseadas em jogos teatrais e na construção de pequenos esquetes que
pudessem nos revelar materiais potentes do contexto da rua. Contudo,
constatamos que esse espaço recluso de contato, que os modelos “convencionais”
de curso/oficina nos impunham, não cabia mais como área de pesquisa estética,
pois também já não servia como caminho de criar uma verdadeira relação.
Explodimos então a ideia da oficina e a
espalharmos pela
instituição, a ressignificamos e a aproximamos da ideia de intervenção. Dessa
explosão, surge o projeto CONTAR[mi]NAR[ele].
Descentralizado, o
projeto CONTAR[mi]NAR[ele] buscou solucionar questões surgidas nas oficinas
como a instabilidade/ irregularidade dos participantes e a percepção de que os
modelos que estavam sendo propostos já não satisfazia o anseio de estabelecer
uma atividade que permitisse uma participação coletiva a contraponto de uma
condução. Para tanto, foi proposta uma série de intervenções que visionavam uma
estrutura que
concentrasse, em sua
unidade, fruição, reflexão e o fazer artístico em um único momento. A exemplo
dessas intervenções podemos citar o "Auto-Eu", no qual foi feito um
grande varal com desenhos e poesias, produzidos tanto pelos artistas da
companhia quanto pelos artistas da Casa em meio ao jardim da instituição, sobre
as individualidades de cada um a partir do “diálogo” com espelhos, dessa
intervenção foi levantado um importante material literário e visual simbólico
para o desenvolvimento da pesquisa da Cia O Grito. Outro exemplo foi a intervenção
"O Bando" na qual dispusemos uma série de instrumentos para serem
tocados por todos que assim desejassem que nos permitiu acessar histórias sobre
as musicalidades de cada participante/ouvinte; ou ainda a intervenção
"Balões" na qual se criou uma pequena narrativa a respeito de balões
coloridos que possuíam "últimos desejos" dentro deles, os quais
deveriam ser realizados quando estes eram estourados, o jogo/intervenção instaurou
um estado lúdico entre os conviventes e propiciou discussões potentes sobre
preconceito, respeito e sobre as particularidades de cada corpo. As
intervenções do CONTAR[mi]NAR[ele] aconteciam semanalmente e eram intermediadas
sempre por uma linguagem estética que permitia tanto a apreciação quanto a
participação ativa dos conviventes de forma espontânea. Com o aprofundamento da
pesquisa, o projeto
CONTAR[mi]NAR[ele] também
ganhou novas proporções.
A segunda etapa do
projeto CONTAR[mi]NAR[ele] se concentrou em analisar os materiais até então levantados
para a elaboração de propostas cênicas, propostas que se aproximassem do
conceito de um teatro interventivo. O que chamamos aqui de teatro-interventivo
tem de antemão condicionantes estéticos do chamado teatro de rua e da
intervenção urbana. Tais condicionantes, contaminados pela própria relação
entre
os artistas e os
conviventes da Casa Restaura-me, permitiu-nos criar realidades momentâneas, porosas, que potencializaram o
momento presente e estabeleceram um espaço simbólico de ressignificação
coletiva de tudo e de todos. Como principal exemplo dessa segunda etapa,
podemos citar a “jornada dos viajantes”. Tal proposta
cênica foi levantada
depois de uma ação-interventiva onde construímos um mapa afetivo do Brasil
junto com os conviventes da Casa, a partir do material levantado, elaboramos
uma proposta cênica na qual três viajantes, expulsos de sua terra natal, chegam
à cidade de São Paulo, ao Brás, à Casa Restaura-me e precisam entender as
contradições de cada
espaço para neles sobreviverem e portanto, precisam da ajuda do público. O jogo
dos atores dialoga diretamente com o seu público que, sendo colocado no jogo,
passa a atuar também como sujeito na
dramaturgia elaborada a partir das propostas experimentadas.