quinta-feira, 19 de novembro de 2020

 

RESIDÊNCIA NA CASA RESTAURA-ME

 

Em setembro de 2015, a Cia O Grito se envolveu com iniciativas públicas para pessoas em situação de rua com a ocupação da Casa Restaura-me.

Sediados no Brás, no segundo andar da instituição que atende mais de 400 adultos por dia e oferece espaço para alimentação, higiene pessoal e lazer aos seus conviventes, demos início a uma pesquisa que buscou materialidades estéticas sobre tal espaço e suas pessoas. No decorrer da nossa residência na Casa, que completou 5 anos em setembro de 2020, articulou-se apresentações gratuitas de espetáculos da Cia O Grito e de grupos parceiros, edições do Sarau no Grito, realizou-se também a Oficina de Ator Brincante com Tião Carvalho, Oficina sobre Coro/coralidade e Jogo Teatral com Ingrid Koudela,

para artistas, estudantes e demais interessados e a Oficina Mascarando de confecção de máscaras de gesso com Telumi Hellen, além das oficinas de teatro que foram oferecidas aos conviventes da casa no início do projeto de residência e o atual projeto CONTAR[mi]NAR[ele]. As ações desenvolvidas durante esses anos de atuação nos permitiram uma relação um pouco mais aprofundada com o contexto da rua e dos temas que a cercam e fundamentaram novas diretrizes à pesquisa da Cia O Grito. Percebemos que as realidades, observadas no espaço de acolhida no qual desenvolvemos nosso projeto de residência, não poderiam ser analisadas tão somente como casos específicos de pessoas em situação de rua, mas sim como simulacros de realidades que podem ser observadas no próprio bairro do Brás onde se localiza a Casa que, por sua vez, pode ser caracterizado como um simulacro das condições da própria cidade de São Paulo.

Entendemos simulacro aqui como um conceito associado à simulação, que implica a representação de algo. Para Ginsburg (2001), por um lado, a ‘representação’ faz às vezes da realidade representada e, portanto evoca a ausência; por outro, torna visível a realidade representada e, portanto, sugere a presença. É exatamente no limiar entre essa ausência e essa presença que entendemos os simulacros da Casa Restaura-me em relação ao Brás e o Brás em relação à cidade São Paulo.

A atual pesquisa da Cia O Grito busca se aprofundar em uma linguagem interventiva que compele relações mais aprofundadas com os espaços e suas pessoas e pauta-se em intervenções urbanas e site specific como linguagens artísticas que podem abarcar esse eixo temático que foi evidenciado pela própria trajetória da companhia em seu projeto de residência, especialmente no caminho entre as oficinas de teatro oferecidas aos conviventes da Casa e o projeto CONTAR[mi]NAR[ele].

As oficinas de teatro desempenharam uma importante função em nossa “chegada”, estabeleceram e fomentaram relações com os conviventes da Casa Restaura-me e afinaram nosso olhar para essas pessoas, nos colocaram em contato com suas lógicas, com suas experiências singulares e suas individualidades, nos levando a um estado constante de (des)construção de nossos pré-conceitos e a um infinito arcabouço de possibilidades. As oficinas eram realizadas em nosso espaço dentro da Casa e eram baseadas em jogos teatrais e na construção de pequenos esquetes que pudessem nos revelar materiais potentes do contexto da rua. Contudo, constatamos que esse espaço recluso de contato, que os modelos “convencionais” de curso/oficina nos impunham, não cabia mais como área de pesquisa estética, pois também já não servia como caminho de criar uma verdadeira relação. Explodimos então a ideia da oficina e a

espalharmos pela instituição, a ressignificamos e a aproximamos da ideia de intervenção. Dessa explosão, surge o projeto CONTAR[mi]NAR[ele].

Descentralizado, o projeto CONTAR[mi]NAR[ele] buscou solucionar questões surgidas nas oficinas como a instabilidade/ irregularidade dos participantes e a percepção de que os modelos que estavam sendo propostos já não satisfazia o anseio de estabelecer uma atividade que permitisse uma participação coletiva a contraponto de uma condução. Para tanto, foi proposta uma série de intervenções que visionavam uma estrutura que

concentrasse, em sua unidade, fruição, reflexão e o fazer artístico em um único momento. A exemplo dessas intervenções podemos citar o "Auto-Eu", no qual foi feito um grande varal com desenhos e poesias, produzidos tanto pelos artistas da companhia quanto pelos artistas da Casa em meio ao jardim da instituição, sobre as individualidades de cada um a partir do “diálogo” com espelhos, dessa intervenção foi levantado um importante material literário e visual simbólico para o desenvolvimento da pesquisa da Cia O Grito. Outro exemplo foi a intervenção "O Bando" na qual dispusemos uma série de instrumentos para serem tocados por todos que assim desejassem que nos permitiu acessar histórias sobre as musicalidades de cada participante/ouvinte; ou ainda a intervenção "Balões" na qual se criou uma pequena narrativa a respeito de balões coloridos que possuíam "últimos desejos" dentro deles, os quais deveriam ser realizados quando estes eram estourados, o jogo/intervenção instaurou um estado lúdico entre os conviventes e propiciou discussões potentes sobre preconceito, respeito e sobre as particularidades de cada corpo. As intervenções do CONTAR[mi]NAR[ele] aconteciam semanalmente e eram intermediadas sempre por uma linguagem estética que permitia tanto a apreciação quanto a participação ativa dos conviventes de forma espontânea. Com o aprofundamento da pesquisa, o projeto

CONTAR[mi]NAR[ele] também ganhou novas proporções.

A segunda etapa do projeto CONTAR[mi]NAR[ele] se concentrou em analisar os materiais até então levantados para a elaboração de propostas cênicas, propostas que se aproximassem do conceito de um teatro interventivo. O que chamamos aqui de teatro-interventivo tem de antemão condicionantes estéticos do chamado teatro de rua e da intervenção urbana. Tais condicionantes, contaminados pela própria relação entre

os artistas e os conviventes da Casa Restaura-me, permitiu-nos criar realidades  momentâneas, porosas, que potencializaram o momento presente e estabeleceram um espaço simbólico de ressignificação coletiva de tudo e de todos. Como principal exemplo dessa segunda etapa, podemos citar a “jornada dos viajantes”. Tal proposta

cênica foi levantada depois de uma ação-interventiva onde construímos um mapa afetivo do Brasil junto com os conviventes da Casa, a partir do material levantado, elaboramos uma proposta cênica na qual três viajantes, expulsos de sua terra natal, chegam à cidade de São Paulo, ao Brás, à Casa Restaura-me e precisam entender as

contradições de cada espaço para neles sobreviverem e portanto, precisam da ajuda do público. O jogo dos atores dialoga diretamente com o seu público que, sendo colocado no jogo, passa a atuar também como sujeito na dramaturgia elaborada a partir das propostas experimentadas.

 

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